O episódio de desrespeito público sofrido pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no Senado Federal, ultrapassa os limites de uma simples divergência política ou embate retórico. O que se presenciou foi a encenação de uma estrutura patriarcal profundamente enraizada, que opera sistematicamente para deslegitimar a voz feminina — sobretudo quando essa voz é encarnada por uma mulher negra que ousa habitar e transformar espaços historicamente reservados a homens brancos.
Achille Mbembe, ao discutir os mecanismos do poder colonial e racista, afirma que “dominar é, antes de tudo, fazer calar”. O gesto do senador, ao ordenar que Marina Silva se “ponha no seu lugar”, é uma tentativa explícita de silenciamento. Não se trata apenas de um desacordo; é um ato simbólico de desautorização, que visa rebaixá-la e deslegitimar sua presença política. Essa interpelação verbal ecoa o projeto de desumanização que Mbembe denuncia: um sistema que exclui, invisibiliza e subjuga corpos racializados e femininos nos espaços de decisão e saber.
A filósofa Judith Butler, em Problemas de Gênero, oferece uma chave de leitura poderosa ao conceber o gênero como uma construção performativa: um conjunto de atos repetidos dentro de normas sociais que regulam quem pode falar, com que autoridade e em que condições. No caso de Marina Silva, o incômodo gerado por sua presença ultrapassa sua condição de mulher. É sua trajetória ética, sua origem amazônida e periférica, sua identidade negra e sua firmeza política que a colocam em desacordo com o arquétipo dominante do sujeito político brasileiro: branco, masculino, cisgênero e privilegiado.
Em Excitable Speech, Butler aprofunda essa reflexão ao demonstrar que a linguagem não apenas reflete o mundo, mas o constitui. Falar é performar posições sociais. Assim, a fala do senador é um ato performativo de reposição identitária: ela tenta recolocar Marina no lugar que o discurso hegemônico entende como “adequado” para uma mulher como ela — à margem, em silêncio, fora da centralidade política. Contudo, Butler também nos lembra que tais atos de linguagem podem ser contestados. E Marina o fez de forma contundente em suas falas e atitudes. Ao afirmar, por exemplo, “O senhor gostaria é que eu fosse uma mulher submissa. Eu não sou.” ela performa resistência, rompe com a narrativa da submissão e inscreve sua autoridade.
O patriarcado, como sistema de dominação simbólica e material, não atua apenas por meio da exclusão física das mulheres dos espaços de poder, mas também pela sua humilhação simbólica. O desrespeito institucional configura uma forma de violência psicológica contínua, uma prática que visa corroer a autoridade das mulheres e colocá-las sob suspeita. As agressões verbais dirigidas à ministra não foram apenas ataques pessoais, mas expressões claras de misoginia institucional. O que está em disputa não são apenas ideias, mas o próprio direito de uma mulher como Marina Silva existir politicamente de forma plena.
Esse machismo institucional manifesta-se por meio da interrupção constante, da condescendência, da tentativa de desestabilização emocional — estratégias amplamente discutidas pela filósofa Sara Ahmed. Ahmed nos alerta para o fato de que a mulher que insiste em falar em ambientes hostis é frequentemente transformada em uma “figura problematizadora”, aquela que perturba a ordem naturalizada do poder. O incômodo que Marina representa não é acidental, é estrutural.
Importa reconhecer que o silenciamento imposto às mulheres em cargos de poder não é discreto. Ele se dá em tons agressivos, olhares desdenhosos, falas cortantes e humilhações públicas. É um grito institucional que insiste em dizer: “Este não é o seu lugar.” Como aponta Pierre Bourdieu, essa forma de violência simbólica opera de maneira insidiosa, naturalizada pelas próprias estruturas que deveriam garantir equidade e justiça. Denunciar o que ocorreu com Marina Silva não é apenas um ato de solidariedade individual. É um posicionamento político contra a misoginia estrutural ainda profundamente presente nas instituições brasileiras. Trata-se de um chamado à escuta ética, ao reconhecimento da legitimidade de corpos historicamente marginalizados, e à responsabilização daqueles que usam seu poder para perpetuar desigualdades. Somar voz à voz de Marina Silva é mais do que apoiá-la. É ocupar um lado da história. É transformar silêncio em palavra, exclusão em presença. É um ato de resistência.