Desde os alicerces da sociedade brasileira, o caminho da população negra tem sido forçado por estruturas pensadas para excluí-la. Não se trata de um descuido histórico ou de uma falha no sistema, o racismo e o sexismo são parte do próprio desenho político que molda quem pode viver e quem será deixado para morrer. A realidade é que o Brasil foi edificado sobre hierarquias coloniais e patriarcais que seguem operando nos corpos negros e femininos como máquinas silenciosas ou não, mas certamente letais.
O Atlas da Violência 2025 escancara essa lógica perversa: mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas de homicídio no país. Em 2022, elas representaram 66,4% das mulheres assassinadas, um número devastador. Esses dados também mostram que 63,6% das vítimas de feminicídio eram negras. A cor da pele e o gênero formam um alvo sobre os corpos dessas mulheres, um alvo validado pela indiferença do Estado e pela passividade da sociedade.
A professora Kimberlé Crenshaw, pensadora da teoria crítica da raça e criadora do termo interseccionalidade, denuncia que os sistemas legais, políticos e sociais foram moldados para ignorar as complexidades vividas por pessoas que ocupam mais de um eixo de opressão. No Brasil, mulheres negras são atingidas simultaneamente por racismo, sexismo, pobreza e violência institucional.
Crenshaw nos adverte que políticas públicas que tratam raça e gênero como categorias isoladas falham justamente em proteger aqueles que vivem na sobreposição dessas opressões, especialmente as mulheres negras. Quando uma campanha contra a violência doméstica ignora a questão racial, ela pode, por exemplo, invisibilizar as experiências específicas das mulheres negras, que enfrentam essa violência de formas mais intensas e, muitas vezes, com menos acesso à justiça e à proteção institucional.
Da mesma maneira, uma pauta antirracista que desconsidera o machismo corre o risco de invisibilizar as múltiplas violências vividas pelas mulheres negras, violências que se manifestam de forma quantitativa e qualitativamente distintas. Entre elas estão o assédio nas ruas e nos ambientes de trabalho, a violência doméstica, e a luta cotidiana para existir, ser reconhecida e ocupar espaços de decisão. Ignorar essas intersecções é reproduzir uma lógica que continua a marginalizar aquelas que estão na base da pirâmide social.
Achille Mbembe, em Necropolítica, nos oferece a imagem de um poder que não apenas governa, mas decide quem deve morrer. As mulheres negras não são apenas vítimas, são alvos dentro de uma geopolítica da morte. Seus corpos são desumanizados, racializados, desvalorizados. São corpos negros, femininos e empobrecidos que o Estado abandona, ou mata, com a justificativa de “ordem” e “segurança”. Esse é o campo onde a vida negra e feminina é descartável. E nesse campo, o silêncio também mata.
Nesse cenário em que a opressão opera como uma engrenagem política, econômica, religiosa e científica, toda ela fundamentada num pensamento eurocentrado e colonial, o contra-ataque não pode repetir os códigos do dominador. A resistência precisa brotar daquilo que nos une em profundidade: os saberes ancestrais, os modos de vida que sobrevivem apesar da violência do apagamento.
Não se vence o sistema jogando segundo suas regras. A estrutura imperialista e capitalista tem como tática incorporar o que a ameaça, fingir que escuta, cooptar e, por fim, silenciar. Por isso, resistir é mais do que enfrentar: é contracolonizar.
É preciso reconstruir a luta a partir da nossa linguagem, do nosso tempo, do nosso corpo, do nosso olhar. Reocupar o mundo com nossos gestos, com nossos rituais, com nossos verbos. Falar com a boca cheia de quilombo, de terreiro, de floresta. Porque só assim, com os pés fincados em nossos territórios de origem, físicos e simbólicos, poderemos construir outro amanhã.
Para Nego Bispo, pensador quilombola e autor de uma das teorias mais potentes do pensamento decolonial brasileiro, não basta descolonizar, é preciso contracolonizar. Isso significa inverter a lógica da colonização, reconstruir o mundo a partir de outras epistemologias, de saberes plantados nas margens, nos quilombos, nas comunidades tradicionais, nos terreiros e nas lutas negras e femininas por existência. Segundo ele, a contracolonização não se faz apenas com palavras, mas com práticas, com modos de viver e de cuidar que não reproduzem o projeto colonial de dominação.
É um chamado para que as mulheres negras, guardiãs do saber ancestral, se reconheçam como sementes da reconstrução do mundo. Um mundo em que a vida, e não a morte, seja o centro da política, das relações e do cuidado. É esse chamado que acreditamos, defendemos e, com coragem e esperança, convocamos. Porque quando uma mulher negra se levanta, ela carrega consigo gerações e planta o futuro. Levantemo-nos. Juntas. Com dignidade, memória e poder.