A mulher negra, no Brasil e em diversas partes do mundo, carrega não apenas as marcas do racismo estrutural, mas também o peso de uma feminino historicamente desumanizado. A intersecção entre as opressões de raça e gênero produz um tipo específico de solidão — que vai muito além da ausência de vínculos afetivos. Trata-se de uma sensação persistente de não pertencimento, de invisibilidade social e de abandono.
Essa solidão tem impactos profundos na saúde mental, frequentemente negligenciada por políticas públicas e sub-representada em pesquisas acadêmicas. Ainda hoje, estudar as questões que atravessam a vida da mulher negra e, mais do que isso, ser uma mulher negra pesquisadora, intelectual e produtora de conhecimento sobre sua própria realidade, é um ato de resistência que enfrenta barreiras estruturais.
Ainda gastamos grande parte da nossa energia tentando comprovar que o racismo existe e continua moldando de forma violenta as nossas vidas. E isso atrasa avanços em pautas urgentes para a população negra, especialmente quando falamos de saúde mental, sobretudo da mulher negra, um tema que precisa sair da margem e ocupar o centro do debate sobre equidade, cuidado e justiça social.
A ideia da solidão da mulher negra não se limita a uma condição emocional individual. Trata-se de um fenômeno social enraizado na forma como os corpos negros femininos foram e ainda são representados na sociedade. Desde o período da escravização, a mulher negra foi colocada em papéis de inexistência, tratada como um ser inferior, desprovida de alma, insensível à dor e, simultaneamente, em papéis de resistência forçada, como o da “mãe preta”, da “forte”, da “que aguenta tudo”. Essa narrativa nega sua humanidade, sua fragilidade, sua dor e sua necessidade de cuidado. Em um mundo que pouco oferece acolhimento emocional, a solidão torna-se um destino imposto.
Essa solidão, no entanto, não é apenas afetiva; ela é também estrutural e material. Segundo dados do IBGE (2022), mais de 63% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres negras e vivem abaixo da linha da pobreza. Além disso, cerca de 28% das mulheres negras são mães solo, e enfrentam sozinhas o cuidado, o sustento e a proteção dos filhos, muitas vezes em contextos de extrema vulnerabilidade social.
A ausência de políticas públicas eficazes para apoio à maternidade, ao cuidado infantil e à segurança social reforça esse ciclo de invisibilização. O Estado falha em oferecer suporte, e a sociedade mantém o mito da força como virtude obrigatória. A mulher negra, historicamente desamparada, segue sendo vista como aquela que deve dar conta de tudo, mesmo quando está exausta.
A negligência à saúde mental da mulher negra é reflexo direto do racismo institucional a quadros de ansiedade, depressão e esgotamento psíquico, também recebemos menos atendimento especializado e mais atendimentos desumanizados sobretudo na obstetrícia. Observa-se que há profissionais da saúde que ainda desconsideram como o racismo, o machismo e a desigualdade socioeconômica afetam o bem-estar psicológico dessas mulheres, infelizmente o racismo científico ainda molda um pensamento cultural onde corpos negros não sentem dor.
Além disso, o acesso a serviços de saúde mental é limitado por barreiras econômicas, institucionais e simbólicas. Mesmo quando conseguem atendimento, muitas mulheres negras enfrentam escuta clínica atravessada por preconceitos raciais e falta de preparo dos profissionais para lidar com suas vivências específicas. A solidão afetiva também é uma realidade marcante. Pesquisas indicam que mulheres negras têm menor probabilidade de serem escolhidas como parceiras afetivas para constituição familiar em uma sociedade que ainda privilegia padrões eurocêntricos de beleza e afeto. Trata-se de um contexto em que os corpos negros são frequentemente vistos como disponíveis, hipersexualizados e fetichizados, mas raramente como dignos de amor, cuidado e compromisso.
Essa invisibilidade no campo amoroso impacta profundamente a autoestima, reforça a desumanização e aprofunda sentimentos de abandono e inadequação. A solidão, portanto, não é apenas um efeito colateral das estruturas sociais: é uma de suas expressões mais cruéis e persistentes.
A ausência de redes de apoio, muitas vezes substituídas por papéis de cuidado unidirecional (cuidando de filhos, familiares, companheiros), agrava o isolamento emocional. Romper esse ciclo exige uma reconstrução das relações sociais e afetivas, na qual a mulher negra possa ser reconhecida como alguém que também precisa e merece ser cuidada. É preciso também ter a autopercepção e autoaceitação da necessidade desse cuidado.
Romper com a solidão da mulher negra exige não apenas ações individuais, mas, sobretudo, políticas públicas em que o afeto plural esteja no centro. Falar sobre essa solidão é falar de uma das formas mais silenciosas e normalizadas de violência emocional que atravessa nossas vidas desde muito cedo.
Reconhecer essa solidão é o primeiro passo para enfrentá-la, e não se trata apenas de acolher subjetividades, mas de transformar estruturas que historicamente nos desumanizaram. A saúde mental de nós, mulheres negras, não pode mais ser tratada como uma questão secundária. Ela precisa ser prioridade.
Cuidar da mulher negra é um ato de justiça social, é uma reparação histórica, necessária e urgente. É um compromisso coletivo com uma sociedade mais humana, equitativa e consciente de que vidas negras importam não apenas na sobrevivência, mas no direito ao bem-estar, ao descanso, ao cuidado e à plenitude.
Como afirmou Neuza Santos Souza, em Tornar-se Negro “O que se busca, ao procurar um psicoterapeuta, é o resgate da saúde mental. Mas o que é saúde mental numa sociedade racista? (…) O processo de saúde mental do negro exige o enfrentamento de conteúdos que lhe foram impostos como verdades, como destino, como natural.” Reconhecer e cuidar da saúde mental da mulher negra é, portanto, romper com esse destino imposto. É reescrever narrativas, cultivar pertencimento e criar espaços onde possamos existir com liberdade, dignidade e afeto.
Respostas de 2
Triste panorama retratado de forma competente. Parabéns! Vocês promovem ações para escolas também, ou apenas para o setor corporativo?
Muito obrigada! Também promovemos ações em escolas, incluindo tanto a formação e capacitação de gestores e docentes quanto a realização de eventos para o corpo discente, com abordagens mais lúdicas para as crianças menores.